Este título, Pedagogia dos Arquétipos, foi criado por Heléne Levy. Ela sugeriu-me que eu desse uma aula sobre este tema no curso de didatas, em Trimurti, em 2013. A aula teve muito boa repercussão e Raul Terren convidou-me a dá-la novamente no curso de didatas do Rio de Janeiro em 2014.
Este texto é a transcrição revista da aula dada no Rio de Ja- neiro. Representa uma elaboração pessoal sobre o tema pedagogia dos arquétipos. Desejo-os boa leitura e desfrute.
E porque uma pedagogia dos arquétipos? O ponto de partida foi criar uma pedagogia à partir dos conteúdos teóricos metodoló- gicos da Biodanza. Os arquétipos são a forma mais profunda e mais disponível que temos para utilizarmos em Biodanza, e com mais certeza de que estamos a ir buscar algo que é fundamental. A palavra arquétipo tem origem na palavra grega Arché, que em grego significa princípio. Princípio no sentido de início, mas princípio também no sentido de fundamento, de algo que funda, base, a estrutura, o piso de onde tudo se vai desenvolver e aconte- cer. O arquétipo é o princípio originário. Os arquétipos estão presentes nos mitos. A palavra grega mito significa narrativa, falar de algo, contar algo.
Os mitos falam de acontecimentos extraordinários, fantásti- cos que aconteceram num tempo anterior ao tempo histórico, o tempo dos Deuses. O mesmo arquétipo está presente em diferen- tes mitos, um exemplo é o arquétipo da morte e renascimento: Cristo, Shiva, Dioníso e Osíris, cujo mito é completamente dife- rente e conta uma história diversa. A vantagem de referenciar- se nos arquétipos é não termos a necessidade de criar tudo novo. Mesmo que penses que a tua história é muito original: “eu sou eu, eu tenho a minha história, eu faço coisas fantásticas, ninguém viveu isto, nem nada disto aconteceu antes…” Não é verdade! Tudo já aconteceu antes, tudo já aconteceu! Que bom! Inclusive os erros também! Estão todos perdoados, não há culpa! Se os Deuses fizeram antes, quem somos nós para não o fazermos de- pois?! Também isto, serve para falar da identidade do facilitador.
A identidade humana tem ressonância ontológica. Já lhe ex- plico Onto em grego é o Ser. A nossa identidade é uma identidade que busca a totalidade do ser, a expressão total do ser. Os arquéti- pos são o mapa, para e de onde vamos buscar os núcleos de ex- pressão mais integradores do humano, mais profundos, mais am- plos do humano. A nossa identidade se expressa numa dimensão infinita. Cada vez mais ser, ser, ser, sede de ser, e ser infinito. Não há limite para desenvolver a identidade humana. Esta res- sonância ontológica é fundamental e os arquétipos existem para mapear o caminho. A identidade do facilitador é parte desta identidade total.
Eu sou um facilitador desde o que sou eu como um todo. Por isso a vivência pessoal é fundamental para a transmissão da Bio- danza como facilitador. O método é um só, e tem a sua ortodoxia e a sua ortopraxia, o seu modelo teórico, os seus conceitos claros. É um modelo teórico elaboradíssimo, sofisticado, refinado, con- temporâneo!
A identidade do facilitador é parte da minha identidade total. E se desenvolvo os arquétipos na minha identidade, e se transmito o método através e desde estes arquétipos que eu integrei na mi- nha identidade. Não como uma personalidade. Há que saber mui- to bem a diferença entre personalidade, que do latim é per sonare, “soar através de” , usar uma máscara, um papel social. Agora estou como didata, estou na minha personagem, na minha perso- na, na minha máscara, no meu papel de didata…
Eu parto desde algo que é da minha identidade pessoal, de toda a experiência de António Sarpe, em seu Sarpeamento no mundo… e a Biodanza me deu pernas e me deu asas e fui para o mundo… Já tinha lido muitos livros e apercebi-me que ler livros e trabalhar não era suficiente, que ir para o mundo me dava o livro do mundo para aprender com as pessoas, olhar as caras, dançar juntos, ver a diversidade humana. Porque Identidade significa diferença. Isto é importante porque vocês não necessitam ser i- guais aos vossos colegas, aos vossos facilitadores e didatas de preferência. Cada um vai desenvolver a sua diferença dentro da ortodoxia e ortopraxia, mas é a tua identidade. E os arquétipos estão aí para nos ajudar e orientar.
Vou propor níveis de evolução à partir dos 4 inconscientes colocados por Rolando Toro no modelo teórico de Biodanza. O Inconsciente vital é ativado quando recuperamos a alegria de viver. Sentir o nosso corpo vivo, o humor endógeno, o teu calor, a tua respiração através do ritmo, dos jogos, da fluidez, desde as carícias tu recuperas o teu sentir vital. Ser antes de tudo um bom animal. Estar enraizado, ter raízes na terra. O inconsciente vital, a alegria de viver e deixar de ter um corpo, e passar a ser o teu cor- po. É uma ontologia, e quando estás na ontologia tu estás na tota- lidade.
Não há separação corpo-alma, não há separação de uma par- te de outra parte. É a unidade perfeita, é a totalidade. O inconsciente vital será um ponto fundamental para que se possa integrar a identidade. Alegria, ser o corpo, sentir-se vivo, humor endó- geno, capacidade de se alegrar com facilidade, sorriso fácil, e energia disponível para a acção. Se tu não tens isso, tens as doen- ças psicossomáticas. E estás sempre com o corpo dolorido, o cor- po pesado, com dores nos órgãos, sem energia para viver, sem vontade de celebrar.
O segundo nível, o inconsciente pessoal. Quando se começa a aprofundar nas defesas do carácter. O carácter é o conge- lamento, é a cristalização de padrões de funcionamento e que paralisam a identidade. Quando estás limitado a um carácter, a tua identidade já não se expressa. No inconsciente pessoal, tu vais dissolver as estruturas de carácter e isso acontece através dos segmentares, que são os exercícios de eleição para este nível. Muitos segmentares, em cascata, com ritmo, com melodia, tudo! Segmentares, segmentares, até à dissolução da rigidez, até que a baba caia pelo canto da boca!…
É universal, em todo o mundo, as pessoas tem dificuldades em abrir a boca de forma relaxada. Estamos sempre a dizer para abrir a boca, relaxar a língua, abrir a boca, abrir o peito, projectar o peito. Em todo o mundo. Não há parte nenhuma do mundo que esteja livre deste congelamento, da repressão da respira- ção… o diafragma está rígido. No segundo nível tu dissolves a estrutura de carácter para chegar à identidade.
O terceiro nível é o inconsciente coletivo. No inconsciente colectivo, os exercícios de eleição são as posições geratrizes e as danças arquetípicas. Na medida em que tu te abres e diminuis as defesas do teu caracter, e abras espaço para a tua identidade, tu integras estas matrizes universais, os gestos humanos universais de todas as épocas e incorporas isto no teu repertório pessoal.
O arquétipo vai ter uma expressão singular. Se a identidade é diferença, tu com a tua singularidade, com a tua ontogénese muito pessoal, tu vais incorporar o arquétipo de uma forma só tua, e só tu o vais expressar assim. Eu sou pai de um menino de 3 meses, e a minha paternidade aconteceu com 50 anos. O arquétipo de pai é universal, mas a forma como o estou a viver é muito pessoal. Eu sou pai, eu estou muito feliz por ser pai. No Brasil se diz Pãe, para os pais que gostam de ser pais e mães. Eu, como tenho um arquétipo no Candomblé que é andrógino, Logunedé, eu fico en- cantado por ser pai e mãe, eu faço as duas coisas. A minha mulher está tranquila, não há qualquer problema. Fico feliz por limpar o cocó, dar- lhe banho, dar de comer, fazer tudo. Esta é a minha forma pessoal de incorporar o arquétipo. Tudo o que eu for viver, pertence aos arquétipos.
O arquétipo não vem de fora, o arquétipo não é algo exterior a nós, é uma manifestação, é uma expressão, é uma revelação desde o nosso interior. Por isso é necessário integrar o inconscien- te pessoal para abrir espaço para o arquétipo como inconsciente coletivo. Por isso é que nas religiões africanas, para que manifes- tes o arquétipo tu danças movendo os ombros e o pescoço, para dissolver as tensões…e quando tu fazes isto manifestas o arquéti- po e começas logo a dançar como os Deuses porque se abriu o espaço para manifestar esta energia. Se estás muito estrutura- do no teu carácter, no teu padrão de funcionar com o mundo, não há espaço para mais nada.
Vou lhes fazer uma síntese da aula até agora: recuperar a a- legria, ser um bom animal, dissolver a estrutura rígida do carácter, incorporar as matrizes universais.
Rolando Toro perguntou “o que é o Ser Humano?” E deu uma resposta, a Biodanza é uma resposta. Ele criou um sistema maravilhoso, abarcador da totalidade, uma cosmologia, uma bio- logia, uma antropologia, uma psicologia. Criou um conjunto de conhecimentos e prácticas para responder o que é o ser huma- no e como fazer caminho para chegar à culminância do humano. A culminância do humano é o inconsciente Numinoso, que signi- fica sagrado, divino e misterioso. Tudo é extraordinário, nada é ordinário e banal. O divino está no mundo. Apercebeste sem qualquer esforço que estás a viver um milagre, que é estar vivo e que fazes parte da eternidade, e que a eternidade está presente em ti, que o infinito está presente em ti, e dentro de nós os Deuses estão a falar. Desde a minha singularidade, desde a minha dife- rença, manifesto a dimensão arquetípica da minha identidade.
A forma de fazê-lo é singular, é desde a diferença, é desde uma identidade, mas para isso é importante a dissolução do carác- ter rígido, senão vais actuar desde a persona. Tu vais incorporar uma personagem e não vais agir desde a tua identidade. O traba- lho no inconsciente pessoal é muito importante. Se, no inconsci- ente vital estão as doenças psicossomáticas, no inconsciente pes- soal estão as neuroses.
As neuroses impulsionam a repetir padrões. O neurótico não faz outra coisa que repetir o mesmo padrão, e sempre sofrendo. “Ai, de novo! É o meu décimo casamento e é a mesma mulher!”. Tu repetes o mesmo padrão de sofrimento, “de novo estou so- frendo a mesma situação de dependência, de desqualificação” mas continuas a procurar as mesmas situações.
No inconsciente colectivo está a psicose. Na psicose não há uma estrutura central da consciência, do ego, do eu. O psicótico está no colectivo mas perdido entre impulsos desordenados. Não se organiza como centro.
No inconsciente Numinoso, Rolando Toro propôs exercícios para coragem de enfrentar o caos. Desenvolver exercícios que desde a tua identidade enfrentes a tua sombra, não teres medo de tudo o que és, a totalidade da tua identidade, olhar-te com capacidade e com coragem de transmutar os estados caóticos. O amor: exercícios de abertura de coração para sentir o amor universal.
O íntasis: a criação de um mundo interior. Nunca estás sozi- nho porque todos temos o nosso mundo interno, cheio de recorda- ções lindas, cheios de sacralidade, e onde estejas, sozinho ou não, tens esta sensação de profunda conexão contigo mesmo. Isto é o íntasis.
A iluminação: Iluminação não é sentires-te tu, iluminado e o mundo sombrio; mas sim a capacidade de olhar a luz do mundo. Invocar estes estados vivenciais onde as pessoas são capazes de olhar a beleza, a luz, a estética antropológica, e observar a luz do mundo.
Agora quero falar concretamente de alguns arquétipos partindo desta tradução. Que há um caminho para incorpo- rar os arquétipos, porque, Rolando sempre dizia isso, se uma pes- soa que não desenvolve a sua identidade e vai directamente aos arquétipos cai num mundo onde só existem Deuses e não vive o concreto. Há pessoas que estão a viver num mundo arquetípico, cósmico, mas não conseguem uma relação de intimidade com outra pessoa. Não é que tenha de haver uma coisa primeiro, de- pois outra, e depois outra. Podem acontecer todas ao mesmo tempo.
Em termos didáticos para vocês compreenderem, há que observar se as pessoas e nós mesmos, integramos todos estes ní- veis, e não estamos só no inconsciente numinoso, perdidos no cosmo e não conseguimos viver a vida práctica, a prosa do cotidi- ano, e transformar a prosa na poesia.
Eu vou destacar alguns arquétipos fundamentais, também como uma proposta evolucionária. Os quatro animais, mas vou começar pelo Tigre. Porque os animais? Porque os animais são arquétipos psicomotores. Não é uma linguagem simbólica e com- plexa, é concreta. Tem localização corporal. O tigre está nas costas. Rolando já intuía isso, e depois confirmou num livro de uma francesa chamada Thérèse Bertherat que se chama “A toca do Tigre”, que o tigre está nas tuas costas e se prolonga para os teus braços.
Então, é muito concreto, um arquétipo psicomotor. Tu o de- senvolves na tua identidade de facilitador, para teres foco, para teres assertividade, para ocupares o teu lugar. Encontra a tua base, encontra o teu centro, e desde a energia do tigre, desde a energia radiante do tigre, tu manifestas a tua identidade, a tua assertivida- de, a tua clareza. E a juntar a isso, o fogo e o Deus grego Apolo. O fogo dá-te a paixão, porque a teoria da Biodanza é paixão. Es- tudá-la com paixão, transmiti-la com paixão e não como algo que é aborrecido, uma teoria sem vida. A palavra teoria vem também do grego, e tem a palavra Theos que é o nome do meu filho.
Eu sou também helénico, no sentido grego de reconhecer que a cultura grega clássica, nos trezentos anos da antiguidade, foi de uma produção que ainda hoje estamos a viver o eco, a resso- nância desta cultura e há que encarna-la e manifestá-la no mundo contemporâneo. A palavra teoria significa olhar o sagrado, con- templar com os olhos dos Deuses. Isto é teoria, e quando fala- mos de teoria estamos a contemplar a manifestação dos Deuses no mundo, olhar como são as coisas e como olham os Deuses. O fogo é para pôr paixão na transmissão. Apolo é para te dar a clareza, pois Apolo é o limite, a borda, é a precisão, é a se- paração de uma parte de outra parte, a descriminação, a claridade, é o sol. É muito importante ter isto na identidade do facilitador, porque se tu procuras em todos os materiais, mas se não tens a capacidade de selecionar o que é essencial, e Rolando tinha muito essa capacidade, pois sempre procurou na cultura humana e soube selecionar o que é biocêntrico. E sempre que eu queria fazer algo de diferente e perguntava a Rolando “O que pensas disto Rolan- do?” Ele dizia “se tem estrutura biocêntrica, se é biocêntrico podes fazê-lo”. Ter a precisão, ter a claridade de selecionar o que é biocentrico. Todas as culturas podem ter coisas biocêntricas, não na sua totalidade, porém sempre há algo que se pode retirar delas que seja biocêntrico e incorporar na Biodanza.
Outro arquétipo. O hipopótamo, a água, Dionísio. O hi- popótamo está presente na identidade do facilitador pelo humor. Ter humor na aula, porque o riso nos relaxa, nos dá energia e nós não adormecemos. A água para ter fluidez. As perguntas… Não te sentires posto em causa com algo, não se sentir confrontado quando alguém faz uma pergunta… Às vezes há um aluno que sabe mais que tu em algum tipo de assunto e tu dizes “ Bom, vou ver isto depois, não tenho a certeza. Gostei da tua contribuição. Se puderes indicar algum livro, eu irei consultá-lo.” Ter a fluidez de dar continente às experiencias, e não rejeitá-las. Se tens muito fogo passional, e se respondes com muita agressividade, expulsas o aluno… quando podes ter um pouco de água e aceitá-lo. E Dio- nísio pela capacidade de ter o prazer de ensinar, o gozo.
O método de Biodanza utiliza um aspecto da investigação de F. Skinner que diz algo fundamental para pedagogia: “o prêmio é mais eficaz para reforçar a apredizagem do que a punição”. Quando nós qualificamos, quando através das danças geramos o prazer, estamos a reforçar a aprendizagem. Se aprende muito mais através do prazer do que através da exigência e da dor.
Estou a selecionar alguns arquétipos que podem fazer a dife- rença. Eu explico. Os quatro animais são arquétipos psicomoto- res. O hipopótamo esta na barriga, a serpente está na pélvis. A garça no peito, é cardiorrespiratório, pulmonar, a liberdade do ar. Está muito bem localizada e concreta.
Os elementos já são mais simbólicos. É muito importante saber a diferença entre símbolo e signo. O signo é uma definição arbitrária, em que um significante tem só um significado. A cadeira sempre tem que ser para se sentar e ter uma parte para en- costar as costas; se não tem a parte de cima para encostar as costas é um banco. Se não tem como encostar as costas tem outro nome. É só um significado para um significante. Signo.
Símbolo é um significante para múltiplos significados, para infinitos significados. Por exemplo amor. Pode ser o amor de um pai pelo seu filho, pode ser entre dois amigos de décadas de vi- das, pode ser entre dois amantes apaixonados eroticamente, pode ser entre os parentes de uma família; pode ser de uma pes- soa que ama o seu semelhante, a humanidade; e por aí fora. Infi- nitas possibilidades de manifestação. Quando falamos de amor estamos a falar na dimensão simbólica. Quando falamos de objec- tos estamos a falar da linguagem signica, de um só significado. Quando falamos dos elementos, dos arquétipos estamos na lin- guagem simbólica. O fogo pode ser o fogo de uma paixão arrebatadora, que varre tudo e transforma tudo, é Shiva dançando, e destruindo e recriando o Universo; e pode ser o fogo da tua casa, da tua lareira, da tua família, ceando, à luz das velas, um fogo tranquilo e que te deixa feliz por teres calor no teu lar. Ex- plode em possibilidades.
Outro conjunto de arquétipos: serpente, terra e Demeter. Demeter é um dos arquétipos principais da sacralização da vida, da celebração e da abundancia. Os gregos tem outra grande mãe chamada Gaia, que surgiu do caos. Gaia é a mãe cósmica, e De- meter é a terra cultivada que nos dá a nutrição, que gera os ali- mentos em abundancia. A serpente com a capacidade de sedução. Eu lembro-me que Rolando tinha todos estes arquétipos muito bem encarnados, e por isso foi para o mundo e a Biodanza se difundiu com muita força, pois onde chegava tinha muita capa- cidade de sedução, de magnetismo.
Isto pode-se desenvolver. Alguns facilitadores já tem facili- dade com grupos, outros trabalham com grupos, outros são artistas, tocam instrumentos, são poetas e capazes de se expressar perante um grupo. Porém isto pode- se desenvolver através da serpente, olhar as pessoas com magnetismo, desenvolver a capa- cidade de fascínio, olhar a todos. As vezes quando estamos dando aula e estamos inseguros, queremos encontrar alguém que nos dê segurança. “Se ela se ri para mim, eu falo só para ela e evito os outros alunos”. Olhar todos, inclusive os que podem estar um pouco dispersos, um pouco fora, tu olhas para eles e eles des- pertam.
Eu gosto de dar a teoria em 50 minutos ou então fazer um in- tervalo, porque as pessoas não tem a capacidade de prestar aten- ção muito mais tempo. Tu pões o máximo da tua serpente para que as pessoas sigam com fascínio, com magnetismo o que estás a propor. A terra para teres a tua base, para estares na tua estabili- dade, para sentires que está no teu lugar no mundo. Não estás aí por acaso. E a capacidade de nutrição da terra, de generosidade para o grupo, dares-lhe tudo, o máximo que puderes.
Para completar, a garça, o ar, e Cristo seguindo também a mesma linha. Cristo como arquétipo do amor. O amor de Cristo é o amor ágape. Por isso Santo Agostinho dizia “Ama e faz o que queres”. Porém não estava a falar de qualquer amor, estava a falar do amor ágape. Se tu amas desde a capacidade crística de amor, tudo o que tu fazes está certo. Isto foi o que Santo Agostinho propôs, o desenvolvimento do amor incondicional, de olhar as pessoas e amar todos, o que é por si uma vivência.
O tipo de eros relacionado a serpente é o eros porneia. Por- neia deu origem à palavra pornografia. Mas a pornografia é uma distorção da palavra originária. Porneia é o amor em que tu te aproprias, tu te nutres do outo. Por isso em português se diz: “eu quero-te comer!”. E a serpente tem esta ambiguidade, pois a ser- pente é um pénis e uma vagina ao mesmo tempo, porque a ser- pente é um tubo digestivo que é capaz de comer algo e ao mesmo tempo de penetrar nos espaços. E a porneia é devorar, e não quer dizer que é mau se está equilibrado com outra forma de amor.
Para os amantes é muito bom este desejo de devorar: “eu quero-te tanto que te quero devorar! Eu te desejo tanto que quero devorar-te!”. Se isto está temperado, equilibrado com outra forma de amor, é maravilhoso ser desejado assim, que o outro te quer como objecto erótico. E tu te ofereceres como objecto erótico, e tens prazer de seres devorado pelo outro e depois vem a ternura. Porém, neste momento, é o máximo desejo de comer, de morder, de lamber. Bem, aqui é o amor patos que é a paixão, que é o amor de possessão que também é muito bom para o amor erótico. Dese- jo de ter o outro para mim com absoluta preferência, “quero-te a ti e ninguém mais!”.
Todas estas expressões de eros tem o seu lado patológico. Se te tornas muito obsessivo só amas uma pessoa e ficas muito obce- cado por esta pessoa, és capaz de matar e morrer por isto. Isto acontece em todo o mundo. Os crimes passionais são por esta intensidade do amor pathe, pela paixão, pois está relacionado com o fogo, com a intensidade do amor. Agora, introduzo o amorfilia, que é a amizade, que é o amor entre amigos, entre parentes, entre pessoas e não concentrado em dois.
Eu vou fazer uma revisão para vermos onde estamos. A pe- dagogia dos arquétipos vai buscar os princípios, a base, os fun- damentos universais humanos, a essência, os núcleos mais pro- fundos da expressão do que é o humano, de onde vem a nossa expressão. Embora possamos nos sentir criativos e diferentes, todas as nossas ações e sentimentos já aconteceram antes. Vamos buscar na fonte arquetípica a nutrição, os mapas do caminho. E isto é maravilhoso pois já temos um mapa! Não estamos so- zinhos, os nossos ancestrais, todos, desde o início disseram coisas para nós… Estamos a viver numa época que há disponibilidade de recursos de expressão, de poder viver e celebrar a vida porque tudo isso já aconteceu antes.
Tudo isso a partir da identidade. A identidade como ontolo- gia (abarca a totalidade do ser, nada fica de fora). A identidade está aberta. Se está fechada não é identidade, é carácter, é perso- nalidade. A identidade não está fechada nunca. Está sempre em actualização no encontro com o mundo, por isso seguimos dançando, encontrando para que a nossa identidade sempre esteja na dimensão ontológica, se renovando se expressando, “Através do outro eu tenho notícias de mim”, como diz Rolando Toro.
Isto não elimina a diferença e a singularidade do sujeito, pois quando incorporo o arquétipo, o incorporo desde a minha identi- dade e ponho a minha história pessoal, mas o que vou expressar pertence à dimensão arquetípica, pertence à grande variedade de expressão simbólica do arquétipo. O arquétipo é um núcleo de símbolos, é uma constelação de símbolos. O arquétipo é virtual, tu não encontras numa só imagem. Há muitas imagens a falarem do mesmo arquétipo, é uma concentração de símbolos e tu vais expressá-lo a partir da tua diferença. O método de Biodanza é um só mas cada facilitador o transmite desde a sua identidade. Esta é a causa da riqueza dos nossos encontros, a diversidade e a singularidade que cada um manifesta. Eu sou seguidor de Gaston Bachelard.
Gaston Bachelard escreveu uma série de livros sobre os qua- tro elementos. É maravilhoso. No ar, ele disse: “ Se queres deixar, desapegares-te do passado há que buscar novos ares. Há que deixar os odores que estão a impregnar o ar querespiras,e buscar o ar puro da montanha”. E o mesmo disse Nietzsche em “Assim falou Zaratustra”. Nietzsche com Zaratustra sobe a montanha para olhar desde cima, para ter a visão de altura da garça, para renovar o seu ar.
Eu nasci na zona norte da cidade do Rio de Janeiro no Bra- sil, depois mudei-me para a zona Sul. Comecei a viajar, e depois mudei de continente e continuo a viajar porque novos ares aju- dam-me a conectar-me com a dimensão ontológica da minha i- dentidade. Ao mesmo tempo continuo a ter a mesma raiz, raízes com asas. Em Portugal continuo a ser o carioca (nascidos na ci- dade do Rio de Janeiro), António. Eu tenho um filho português, e quando cheguei ao Rio de Janeiro, dei-lhe um banho de manguei- ra no quintal de casa, como um baptismo carioca. Quanto mais tu expressas a variedade de potenciais latentes, mais te conectas com a dimensão ontológica e supera a dimensão da personalidade e do carácter. E a diversidade dos arquétipos nos possibilita isso, de nós expressarmos diferentes tipos de amor: pathos, porneia, ágape, filia… Diferentes animais, diferentes elementos, diferentes Deuses… Aqui também podemos pôr Shiva e incorpo- rar a capacidade constante de deixar de ser para renovar, e Vishnu para conservar o que é bom.
Então, cada vez expressar mais arquétipos. Se tu dizes “Não, eu sou uma pessoa muito transcendente. Eu quero encarnar em mim o Numinoso, o cristo cósmico e nada mais”, tu dissociaste da cintura para cima. As pessoas que são muito espirituais põe o seu coração à frente, o seu olhar para cima mas embaixo, está tudo fechado. Estão a negar a serpente, elas estão negando o inconsci- ente porque o inconsciente está no centro visceral, na região ab- dominal. No peito (centro afetivo) está o amor, desde o peito eu amo, e no centro visceral (região abdominal) estão as emoções guardadas. Por isso, as pessoas que têm muitos ressentimentos guardados têm muitos problemas gastrointestinais, porque está tudo ali. No centro visceral está o inconsciente, a terra profunda, toda a tua história emocional. E se tu não expressas isto através do tigre, das danças de expressão, acabas por ficar doente com doenças psicossomáticas.
Antes dos quatro animais, o que fazemos? As linhas de vi- vência. As linhas de vivência são o primeiro convite à expressão da identidade, são os canais de expressão genéticos. Este é o início, antes dos arquétipos, começamos com as linhas de vi- vência para que as pessoas entrem em contacto com a sua energia vital. Cada linha de vivência tem três níveis de evolução. Quando perguntaram ao Rolando “ Como fazemos para não pre- cisarmos mais de fazer Biodanza e não perdermos a integração da Identidade?”. E a resposta de Rolando foi: “Se tu tens a evolução dos três níveis em cada linha, tu podes parar de fazer Biodanza e não vais perder a integração. Mas se tu não alcanças-te os três níveis, se tu paras, perdes.”. Por isso há pessoas que fazem um pouco, se sentem maravilhosas e param; depois quando se sentem carentes de novo, voltam para Biodanza. A Biodanza, neste caso, é apenas um carregador de baterias.
Na vitalidade, no primeiro nível: há o aumento da energia vi- tal e motivação para viver: ir a festas, viajar, trabalhar, energia e disponível para ação. O primeiro nível de evolução na linha de vitalidade é desenvolver o humor endógeno (sensações internas de bem estar orgânico). Sentir-se vivo desde a vitalidade do teu corpo. Ter energia e alegria para viver.
Segundo nível: Eliminação de sintomas psicossomáticos Como aquelas pessoas que estão sempre “Como está hoje? Hoje a cabeça está melhor, mas me dói um pouco o estômago”. E no outro dia de manhã “Doí-me o joelho, mas o estômago está muito bem”. Integrar o teu inconsciente vital, e deixar de ter sintomas psicossomáticos. Há pessoas que estão sempre com algum tipo de sintoma. A vivência do corpo é ter sintomas de doença.
Terceiro nível: renovação biológica. Que tu acordes renovado.
Revisando:
Primeiro: energia para viver, ter garras, e energia para ir. Segundo: eliminação de sintomas psicossomáticos.
Terceiro: é a renovação biológica. Tu olhas-te e dizes “estou cada vez mais parecido com o meu filho de três meses”. Isto é a renovação biológica.
Na linha de sexualidade, no primeiro nível, há a desculpabilização. A sexualidade é a coisa mais inocente, mais pura, mais linda e sagrada do mundo. Desculpabilizar, superar a dissociação corpo e alma de Platão, exorcizar 2000 anos de cristi- anismo, negando o corpo e o associando ao pecado. Superar isto através da desculpabilização.
O segundo nível, ter a capacidade de atingir o orgasmo. Su- perar as disfunções sexuais. Para os homens não terem ejaculação precoce e desfrutarem mais do prazer erótico, e da genitalização. Para as mulheres é a capacidade de sentirem orgasmo, porque é uma epidemia mundial a incapacidade de sentirem orgasmo, e muito porque não conhecem o seu próprio corpo, não se mastur- bam… No terceiro, é a fusão erótica quando a sexualidade encon- tra a sua dimensão transcendente. É através do orgasmo, da fusão com o outro que tu experimentas “la petit mort” como dizem os franceses. Tu estás tão feliz que podias morrer com este orgasmo maravilhoso, que envolve todo o teu ser.
Na linha de Criatividade, primeiro nível: expressão das emo- ções. É a melhor profilaxia para as doenças psicossomáticas. Há que expressar. E às vezes há pessoas que dizem que “a Biodanza não expressa a raiva, porque é sempre pelo prazer, com abraços e bei- jos”. E eu digo “Vem aqui, vamos fazer um yang com grito”, e ponho a pessoa para fazer e por toda a sua capacidade de expres- são do yang com grito, e ela toma consciência que ela tem difi- culdade em expressar e fazer a transmutação da raiva em ação criativa. O caminho para transformar o sofrimento, a dor, a raiva em criatividade, em poesia, em arte é o primeiro nível. Há que expressar, expressar, expressar, expressar para não ficar doente, com as tuas vísceras contraindo-se com problemas psicossomáti- cos, que podem levar a coisas graves como cancros, doenças auto- imunes, autoagressivas, do sistema imunológico atacando o pró- prio corpo. Por isso, há que expressar-se.
Segundo nível: criatividade existencial. Que tu sejas capaz de eleger onde morar, o que fazer, com quem viver. Onde seja, em outra cidade ou em outro continente. O mundo é pequeno. Tu podes ir de avião e descobrir o teu lugar no mundo, e criar a tua própria vida. Ser artista de ti mesmo, uma auto-escultura. Depois dos cinquentas anos, somos artistas de nós mesmos. Se a nossa expressão está abatida, pesada, envelhecida é porque vivemos assim. Ser artista de ti próprio é criar a tua vida, a tua própria existência
Terceiro nível: criação artística. Há que tocar uma guitarra, percussão, escrever poemas, dançar, cozinhar. Fazer coisas lindas. Pôr beleza no mundo. Há fome de beleza. Há um instinto de esté- tica no humano Queremos beleza, não basta viver. Queremos coisas bonitas.
E a linha de afectividade. No primeiro nível é eliminação de relações tóxicas. Ser tão inteligente como uma ameba. Este é o resultado da investigação Reich. Uma ameba, se a pões num am- biente de nutrição, ela abre a sua membrana e se expande. Se a pões num ambiente de ameaça, ela contrai-se e vai-se embora. Há que ter esta inteligência, e não permanecer-se na desqualifi- cação, na toxicidade. Agradecer a pessoa, porque a pessoa não é tóxica “Muito obrigada. Tchau”.
No segundo nível: a equalização afectiva, entre o que dás e o que recebes. Reciprocidade. Não como um acordo de negó- cios, não. Como um feedback. Reciproco, equalização, equilíbrio, não seres tu o salvador do mundo. “Eu dou-lhe porque sou abun- dante, e a pobrezinha precisa, e eu vou cuidar dela”, porque a pessoa que dá sente-se mais forte, superior aos pobres que preci- sam de receber. Aprender a receber é a indicação terapêutica mais importante para esta etapa.
E o terceiro nível, a luta pelo bem-estar do outro. O que fa- zemos em Biodanza é propagar o amor. Os nossos grupos priva- dos também são grupos sociais. Todos somos pessoas sociais, todos estamos num trabalho de transformação, de promover de mudanças. Quando vejo que a Biodanza se propagou em todo lado em Portugal, e que eu sou parte deste movimento, eu sinto que estou a contribuir para que as pessoas vivam melhor, tenham mais alegria, prazer e felicidade.
Na linha de transcendência, o primeiro nível é a percepção holística do universo, que há uma totalidade, que não existe nada separado. Ir além da dicotomia eu-natureza, natureza- cultura, terra-universo. Vivenciar a unidade. E o segundo nível, a capaci- dade de transe e regressão. Como eu disse, há que se babar (ativa- ção parassimpática, produção de saliva), com abandono total e não apenas ir ao chão e relaxar-se. Entrar em regressão e viver a experiencia de não ser nada porque se fundiu com a totalidade. O terceiro nível é a criação do espaço pessoal, íntimo. O espaço interior é a palavra que Rolando utilizou. O Numinoso revelado no Intasis, é o que tu levas dentro de ti, o mundo, a humanida- de, o universo e nada te pode tirar isso. E cada vez que falo disto, eu lembro-me de Nelson Mandela, porque eu vejo que ele conser- vou o seu mundo interior, a sua riqueza interior, e mesmo que tenha estado preso durante 30 anos, ele não perdeu isto. Quem tem este nível de transcendência se torna indestrutível. Nada te pode aniquilar. É como no poema de Rolando Toro: “Mesmo que em farrapos, com fome, sem pão, em terras estranhas, ressurgire- mos puros, livres e iluminados.”
Eu falo muito de Viktor Frankl na garça, por causa da visão de altura. Quem tem uma boa garça vai sempre ver de cima. Não há nada que te atrapalhe, que te aprisione, não há problemas coti- dianos que te tirem a tua liberdade. Tu és sempre livre, tu sempre reconheces a tua dimensão infinita, cósmica e sagrada e nada nem ninguém pode tirar-te isso porque tu olhas desde de cima.
Vocês reconhecem que a “Biodanza é toda arquetípica”, po- demos afirmar isto. Não há nada na Biodanza que não aponte para símbolos universais. Tudo está a expressar a universalidade, e a proposta é que incorpores na tua identidade toda esta universali- dade. E podes falar de todas as linhas de vivência, dos quatro elementos, dos quatro animais, dos Deuses, e na hora de dar a aula tu usas isto. E tu incorporas em cada momento uma dimen- são distinta, e cada linha de vivência tem uma relação com um instinto, com uma protovivência, com uma emoção. Tudo está organizado, e com total coerência.
CONCLUSÃO
E para fechar, eu quero recordar um arquétipo da filosofia, o “Banquete de Platão”, que é um clássico da antiguidade, que tem muitas coisas boas para incorporar. O primeiro personagem que fala no banquete, um jovem que se chama Fedro, disse o se- guinte: “O amante é superior ao amado, porque desenvolve as suas virtudes para conquistar o seu amor”. Há que amar, há que se por na posição de amante, e por amor tu te desenvolves. É isto que estou a falar, desenvolver-se, ontologicamente. Desde o amor, por amor, por ser um amante devotado, tu te desenvolves. O a- mante tem esta vantagem, tem o impulso de desenvolver-se por- que quer amar. E a polis ideal, a cidade desejada para Fedro é habitada por amantes, todos são amantes. O político ama o seu eleitorado, o médico ama o seu paciente, o professor ama os seus alunos e por amor oferece o melhor de si. E inspirado por Fedro, eu ofereci, com todo o meu amor, o melhor de mim.